31.10.08

O Catador

Passa o dia a revirar
latas,
sacos,
monturos.

É papel limpo,
sujo,
muito papelão:
caixas de impressoras,
micros,
geladeiras,
tvs,
fogões.

Antigos furos:
jornais mortos,
revistas idas.

É ele quem junta tudo
sobre a carroça.

É ele próprio
quem carrega,
a cada dia,
a história da nação,
para reciclar.

1.8.08

Cruzeiro Lunar

A luz da lua,
lívida,
atordoa a cabeça nua.

Quereres mil.
Do não
jogo fora o til.

Com a nau ancorada
vou zarpar
por um mar revolto,
lunar.

21.6.08

Negra Li

Hoje acordei
e o mundo
estava nele mesmo

os carros
e os ônibus
subiam em algazarra
à minha cama
já ela
não mais
emolduraria minha janela.

Embora eu não quisesse
ela se foi

foi pra não voltar

veio a morte
e a levou

levou-a
para longe do meu olhar

Para ela agora
não há mais
carros
ônibus
janela
e eu.

Para mim
foram-se
os carinhos
um roçar de pele
o ronronar matinal.

Ela se foi
para não mais voltar,
minha gata
Negra Li

1.6.08

Memórias para mais

Com serenidade e paz
a memória se faz
e dela a realidade perdida
brota brejeira

A voz ao longe
do verdureiro na feira

O verde matizado
da mata

O rubro intenso
do batom da mulata

A voz do meu amor
a dizer juras eternas
em um absoluto atemporal
que por tudo se espraia

O manequinho
apregoando o jornal

Alegria, alegria,
Caetano cantando loas ao Sol.

Domingo no Maraca
com o antigo futebol.

Tudo, enfim, que foi bom
surge
e nos dá
a mão

17.3.08

Deslocado

O sítio meu no mundo
é pequeno,
mero aceno
num mar de lenços multicores.

Agonia sem fim
esse vazio em cujo espaço
não caibo,
porque não há como preencher.

Meu lugar no mundo
é menor que eu,
porque sou inteiro o mundo todo
e mais
e, portanto, sou somente nada.

9.3.08

Competitividade Jaqueira

Era uma vila operária habitada por trabalhadores da fábrica de telhas e da de tecidos Maracanã. A lida era dura. Labutavam muito. Iam dormir com as galinhas e com os galos despertavam. Isso em um tempo em que o ditado se dava literalmente, quando, na Usina da Tijuca, ainda se morava em casas com galinheiros e em que os galináceos andavam soltos pelas ruas, ciscando ali e acolá.

Pois bem, o fato é que todos se retiravam por volta da hora do Angelus, para fazer suas preces e, ato contínuo, dormir.

Havia vezes, entretanto, em que a rotina era quebrada. Das casas ouvia-se um som surdo e, em resposta, seus moradores saíam em camisolões alvoroçados. Iam atrás dela, a jaca que caíra, em aberta competição. Até que se ouvia um grito de rasgada euforia. Um deles a havia encontrado. Catava o troféu e em atitude vencedora, o levava secundado por uma procissão. O felizardo adentrava a sua casa, retalhava a jaca e compartia sua vitória com os demais. Todos teriam jaca para o café da manhã seguinte.

7.3.08

Joio e Trigo

Joeirar
O que se vai falar.
Pensar muito
No intuito
De não dizer
Asneira.

Mas, se são
As palavras
Como lavas
De um vulcão ativo,
Como suster o crivo
Se for para dizer:
Mulher,
Sou louco
Por você!

4.3.08

Acordados por Sonhos Somos

No meio da noite
Acordados
Por sonhos
Somos

Poder
O mundo supor
Nossos desejos interditos
Apavora e encanta

A batalha maior
Vencer o outro em nós
E gozar nos campos do real
As fantásticas miragens da fantasia

O pensamento
Nau dessa viagem
Do conhecimento de nós
Dor e delícia nossa
Nos leva

Quanto mais fundo
E longe se vai
Menos dói a dor
E mais deliciosa a delícia
De ser e saber o que se é

15.2.08

Sonhos da Noite no Claro do Dia

Tentei dormir em vão.
Levantei-me,
Então
Fui sonhar.

Fumaças no ar,
Mil projetos,
Mil sonhos vívidos,
Ávidos por serem vividos.

Amanheceu,
Acontece a realidade:
Os sonhos serão pelo dia olvidados?

9.2.08

Narciso Terrificado

Ferve
Minha verve.
Quando Escrevo,
Exponho meu nervo.

Nervuras do real
Racham minha alma
Como raios
Na noite lúgubre.

A perfídia dos,
Como eu,
Homens
Instila
Na tinta negra
O seu fétido.

Assume o ar
O peso do rinoceronte
E sua cegueira o envenena;
Translúcido e opaco,
Sufoca-me
Por não me deixar
Olhar e ver
A minha face.

Ergo-me
Ao Espelho.
O visto
Apavora,
Devora.

Como narciso,
Terrificado,
Demora-me
A Eternidade
A Visão
De Mim(?).

O horror
Dessa Dor
Purga-me,
Apartando-me do humano Ser
Sem deixar de ser Humano
E passo vidas, então,
Aprendendo a só ser
Um Humano Ser Humano.

Publicado no e-zine 16 do Bar do Escritor

1.2.08

A Relatividade na Prática

O tempo é uma dor que persiste em si
por isso também é a sua cura
O melhor remédio
a pior tortura

Dias e dias
passam arrastados por mim

Não há dor
que o tempo não cure
Mesmo a dor pelo tempo secretada
Aflição do tédio
escorrendo-me lento pela cara

De uma hora para outra
passa o tempo
e a dor do tempo passa
Foi ela
que enfim
apareceu na praça.

O tempo veloz
acelerado por aquela voz
as risadas
as brincadeiras

De súbito tudo se atira em precipício soturno:
Nane se vai
e me submerge no escarro do tempo

Quantos dias durarão as próximas horas?

25.1.08

Vó Dulce

Fiquei mais só:
um pedaço da história
da minha infância,
adolescência,
juventude
e idade adulta
se foi agora
com a partida da minha avó frondosa.

Ela me deixou
mais triste
e feliz.

Tristeza de não mais vê-la,
de não mais poder aninhar-me
no regaço da sua dupla maternidade
na linha reta
que a ligava a mim
por intermédio de minha mãe.

Felicidade de lembranças claras e luminosas:
ela no seu jardim diariamente
às voltas com latas, vasos e vidas pintadas de branco.
A terra acomodada com carinho,
com a fé, a força e a determinação
de que era fértil aquela terra e bom o adubo,
de que suas sementes vingariam em rebentos,
de que seus rebentos cresceriam e viriam a ser árvores um dia,
de que as árvores floresceriam,
flores das quais adviriam vários e saborosos frutos:

Aires, que deve estar, radiante, de volta à sua companhia,
Ariza,
Eu,
Raquel,
Soráya,
Fábio,
Luciana,
Felipe,
Fabrício,
Alessandra,
Natália,
Juliana,
Ígor,
Danilo,
Amanda
Luísa ...

Em todos, esteja certa minha avó,
viceja sua seiva.

Que a paz do dever cumprido em alegre harmonia lhe acompanhe,
sempre.

 
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